Hoje lendo o jornal, coisa que quase nunca faço, encontrei essa pérola e ela me remeteu a história da minha família...
Li esse texto e gostei tanto que saí repassando pra todo mundo que sabia que leria e poderia compartilhar de algum sentimento como eu!
Sem levar em conta a história do autor da matéria e reflexões teóricas, procurei ficar apenas com o sentimento que ele me trouxe...
Angola Santo Cristo
Por Milton Cunha
Fonte: Jornal O Dia, pág. 3 de 21 de junho de 2011
Precisando estampar os mapas das províncias de Angola numas lycras, fui bater numa oficina de Sublimação (técnica com prancha quente que transfere as cores do papel para o tecido) no velho Santo Cristo. Quem me atendeu foi o pequeno negro Fernando, jovem de quase 30 anos, querido, magro, doce como uma criança. Um dos proprietários do ateliê, ele ficou fascinado pelos mapas da terra da vida de seu povo.
Seus olhos brilhavam e ele pulou sobre as estampas de Ilu Ayê; eu não existia mais. Era ele e sua terra de outrora; eu sabia que a alma de Fernando e seus pensamentos já não mais estavam no casarão do velho Rio.
Aos poucos, ele conseguiu sair do transe e balbuciou: “O senhor conhece Angola, como é lá?”. Ele não tirou os olhos das cartas geográficas, e eu falei para o ouvido dele, um escutador do tempo e da memória: “Olha Fernando, a terra vermelha da poeira eterna que tinha lá baixou, asfaltaram as ruas, subiram os prédios e hotéis, estão construindo os conjuntos populares. Estão levando as famílias do Centro para estes conjuntos, vão reurbanizar a velha Luanda. Mas o que mais me impressiona, Fernando, é a mulher angolana. Como trabalha, como é forte. Suas peles brilham ao sol do meio dia, suadas de andar pra cima e pra baixo como nossas antigas pretas-de-ganho, pintadas por Debret. Impressionante a fibra delas, acho um espetáculo quando elas pegam os bebezinhos, jogam na costa, amarram um pano no peito que segura eles lá atrás, e saem vendendo os mais cariados produtos, de abacaxi a peixe, de tecidos a quinquilharias de cozinha, uma beleza. São guerreiras incansáveis”.
Pronto, como se não bastasse a loucura dele, ainda tinha minha descrição lírica, que o atravessou sobre o Atlântico. Foi aí que ele me disse: ”Minha avó era uma delas, foi lavadeira a vida inteira, morava na favela de Cordovil, educou mamãe e nos educou, três irmãos, nos botou pra estudar, sempre lavando a roupa das madames da Zona Sul. Hoje estamos todos formados, vivemos bem, mas vovó foi a negra mais valente que vi. Ela era filha de um preto tão preto que na foto quilombola que temos dele, de 1910, no Mato Grosso, só aparece olho e dente branco do sorriso largo. Ele era escravo vindo de Angola, e ela nasceu na lei do ventre livre. Casou, veio pro Rio, e viveu a trabalhar feliz. Um dia vou visitar Angola...”.
Rapidamente o fio de ligação de um novelo que se desenrola há séculos encontrou conexão. São aqueles momentos na vida que jamais esqueceremos. Negro é vida, na mutação do tempo. José do Patrocínio, nas tábuas da oficina. As águas dos olhos de Fernando eram as vagas de Yemanjá na travessia dos navios negreiros, com o mestre-sala dos mares. O mistério das terras africanas cantavam e dançavam diante de mim, emocionante.
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